Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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quinta-feira, outubro 07, 2004
 
A xícara

Mal triscou os lábios na borda daquela pequena xícara de café e ela tornou-se boca. Neste instante, Lizandra se viu envolvida num beijo, as mãos segurando delicadamente o rosto do Amante. Olhos fechados, sentia a aspereza da barba crescendo sob as pontas de seus dedos e imaginava um rosto quase infantil, liso e branco como a xícara que ela havia escolhido. Quase podia temer seu despertar e o rosto adulto e envelhecido colado ao seu por carne e saliva. Preferiu então levar as mãos até os cabelos, que deveriam escorridos e pretos. A textura encaracolada e úmida traiu todas as suas expectativas. Lizandra apertou os olhos com mais força, tamanho o estranhamento.

O Amante trouxe seu corpo para mais perto, fazendo-a sentir-se quase asfixiada espremida contra seu peito envolvente. Lizandra se sentiu pequena como nunca se sentia, pensou estar sendo guardada numa concha, a concha do corpo daquele homem que surgiu do nada. O beijo seguia, sem que ela se permitisse abrir os olhos nem para dar uma espiada. E se ela fizesse isso e acordasse sozinha em sua cama ensolarada? Morte à curiosidade! Quantas vezes ela não já tinha estragado tudo por querer as coisas preto-no-branco?

Enquanto se beijavam, o Amante começou a conduzi-los numa dança sem música. Corpos colados, mexendo e caminhando juntos. Lizandra não gostava de dançar, mas com suas pernas entrelaçadas com as do outro era diferente, ela não pensava que ia cair. O balé das mãos pesadas em suas costas, sob sua blusa, davam o ritmo, davam o tom, a cadência dos passos. Ela gostaria de sorrir, se isso não fosse interromper o beijo, por isso então o abraçava mais forte.

Lizandra não havia percebido que estava descalça até sentir a textura de folhas secas feitas de uma matéria gelada roçarem seus pés. Outra vez a curiosidade. Aquele chão se movia, ela queria saber o que era. Concentrou-se no que sentiam seus pés, mas percebeu que isso também a dispersava do beijo e assim poderia quebrar o encanto. Também quis saber que homem era aquele, cujos pés percebia serem enormes, mas só tocava os seus suavemente com suas sandálias.

O queixo dele arranhava seu rosto e o sabor de sua língua era suave. Ainda dançando, o Amante bagunçava os cabelos de Lizandra, que também não gostava disso. Às vezes ele puxava com vigor e isso quase separava suas bocas. Ao invés de abrir os olhos, ela os cerrava com mais força para não parar nada daquilo. Era sua boca que buscava a dele de volta, sugando. Lizandra queria aproveitar cada movimento, cada nuance e variação daquele beijo, mesmo que isso lhe custasse a cegueira em que ela estava mergulhada. Dançando, eles caminhavam. O que havia sob seus pés mudava, Lizandra percebia, mas não queria parar.

Eles mal entraram no que ela sentiu como um campo de gelatina morna, a dança é interrompida num solavanco. Corpos projetados em direção ao chão, que não chega. Mais de meio segundo é longe demais para uma queda. É abismo. Medo. Um calafrio repentino revirou seu estômago e Lizandra nem pensou que tinha aberto os olhos e a boca. Ia gritar, não conseguiu. Ainda bem. Na ponta de seu lábio inferior, não era xícara. Uma colher ardente, recém tirada do líquido fumegante. No cibercafé. Num fim de tarde.

quarta-feira, setembro 29, 2004
 
Candy Candy Candy

Tinham se conhecido há pouco tempo, mas o suficiente para Ivan entender que ela gostou dele
de cara, como num desses clichês românticos de paixão à primeira vista, nos quais ele
secretamente acreditava. Percebeu isso naqueles olhares que sorviam cada uma de suas
palavras, no abraço febril da despedida e no beijo que mergulhou em sua face.

Já para ele, ela não disse absolutamente nada.

Naquele dia, ela sentou diante de seus olhos negros, úmidos e pasmos, admirou-os mais uma
vez e pôs todas as cartas na mesa dizendo o que sentia. Ele só podia agradecer - e o fez -
mas além disso não sentia mais nada. Dizer qualquer coisa seria redundante, por mais que
fosse verdade. A menina era realmente ótima, mas só isso. Não o suficiente para
levar para cama ou sair de mãos dadas por aí.

Ela ficou visivelmente desapontada, dava para notar na sua franja caída nos olhos, no
saleiro nervoso em suas mãos, na voz que virou um fio. Até que ela respirou fundo - ia
saltar num abismo - e enfiou dois dedos no bolso do lado esquerdo do peito e tirou um
pequeno objeto cor-de-rosa. Pediu que ele abrisse a mão e o colocou sobre ela.

- O que é isso?
- Meu coração. Come.

Parecia uma bala, realmente tinha a forma de um coração. Ivan segurou, tinha a textura
estranha de uma borracha macia e estava morno. Um tanto conduzido pelo instinto, aproximou o coraçãozinho maciço do próprio rosto e cheirou, sentindo um aroma doce e quente. Sem pensar
muito - nem saber o motivo - enfiou-o na boca. Mordeu. A menina em sua frente fez uma
expressão que ele não soube se era de prazer ou dor, porque tem horas que o limite entre
essas coisas parece bem tênue. Ele começou a sentir um gosto fortíssimo, ainda doce, mas um
tanto amargo e que pareceu impregnar seus sentidos inteiros. Ivan fechou os olhos e começou
a sentir cuidadosamente a textura mole e quente do coração em sua língua. Era bom e ele
sentia seu corpo se arrepiar.

Quando abriu os olhos, percebeu que estava com as carnes brancas da bunda daquela menina
preenchendo suas mãos, o rosto enterrado entre suas pernas. Ela fazia um barulho dengoso e
batia com os punhos vigorosamente sobre o colchão. De onde estava, ele podia ver seu ventre
oscilando rapidamente com a respiração. Ivan gostou do que viu, e ouviu e sentiu com as
pontas dos seus dedos e língua. Um raio percorreu sua espinha e eletrizou a raiz de seus
cabelos. Num estalo, sentiu sua glande latejar e apertou com mais força as nádegas da
menina. Com apenas um impulso, moveu-se sobre ela e escorregou por entre suas pernas. Ouviu que ela calou-se num soluço. Foram necessários somente uns dois ou três movimentos para que
Ivan se sentisse derreter.

Ivan despertou com o suor que escorreu por suas têmporas. Na boca, um gosto de sangue
ligeiramente adocicado. Em sua frente, Lilith se desfazia. Toda aquela manobra resultou em
nada. O amor, ele continuava não sentindo. Pegou em sua mão agradecendo mais uma vez.
Envergonhada, ela abaixou o rosto fazendo com que seus cabelos novamente cobrissem seus
olhos, agora escondendo também um par de lágrimas que desciam queimando. Sem mais, ela se
levantou e foi embora. Logo mais ele a esqueceria completamente. Ela, no entanto, carregava
mais uma cicatriz de mordida dentro do peito.

quinta-feira, junho 10, 2004
 
O Feiticeiro dos Discos
Ser vendedor não é apenas uma questão de talento. Algumas pessoas conseguem elevar isso a um estado de arte, ainda mais quando mexem com nossas paixões pop.

Entrei naquela loja só porque vi um cd deveras interessante em promoção na vitrine. Me dirigi ao vendedor, um negro baixinho, de dentes afastados, que logo abriu um enorme sorriso para me atender. Começou a falar muito bem da promoção, que o dono não fazia idéia das pérolas que estava vendendo a preço de banana, mas não era ele quem ia alertá-lo. O próprio vendedor se dizia alucinado com as coisas que ele estava descobrindo na promoção e, a partir do meu pedido inicial, foi puxando uma corda de referências e me oferecendo mais e mais cds.

Foi aí que reconheci o cara. Ele trabalha vendendo discos e fitas desde a década de 80, é uma dessas figurinhas tarimbadas nos bastidores de um cenário artístico-cultural. No caso dele, é uma relíquia do rock baiano. Já trabalhou nas lojas underground de discos do centro da cidade, hoje extintas, e desde então seu trabalho não é apenas ganha-pão, mas uma arte também. Agora está num shopping center fazendo seu pequeno show.

Tomando como ponto de partida o que você pede, ele lhe mostra outras coisas, mas não é aleatoriamente, como se você pedisse um Sepultura e ele começasse a lhe empurrar qualquer cd de trash metal. Não. O sujeito tem feeling. Parece que ele adivinha o que você gosta e, a partir de influências, período histórico e outras semelhanças sonoras, o que ele mostra é justamente o que você, se tivesse grana, gostaria de comprar. Ele tem sensibilidade e encontra semelhanças sutis, sendo capaz de inferir a afinidade entre uma banda pesada e uma pop, entre um vocal grave masculino e a voz sibilante de uma cantora. É incrível!

Para tornar tudo ainda mais interessante, enquanto ele lhe apresenta os sons, vai contando a história do artista, da composição daquela música, fatos curiosos na biografia da banda... O cara é uma mega-enciclopédia hipertextual ambulante! A essa altura do campeonato, você já tem na mão uns 5 discos e não faz idéia de como seria possível não comprar somente um deles.

O sujeito não só vende e gosta muito, ele vivencia música. Por isso, além de ter informação de sobra ? e saber muito bem o que fazer com ela ? ele tem uma ligação afetiva muito grande com as músicas. Por isso, enquanto você ouve o som e as histórias, eventualmente ele conta trechos de sua própria vida, dando um toque ainda mais pitoresco à sua visita.

Então ele diz que tal música ele oferecia para uma garota por quem era apaixonado, que tais discos ele teve de vender durante uma crise financeira, que tal melodia o fazia chorar embaixo da cama, que tal artista ele ouvia no bar com os amigos bebendo vinho e cantando junto... A impressão que dá é de que ele não quer apenas lhe vender discos, mas quer se tornar seu amigo a partir de afinidades musicais e isso parece sincero. Lembra um pouco aqueles personagens doces e neuróticos de Alta Fidelidade.

Não é preciso dizer que você se sente muito acolhido e bem servido enquanto cliente, pois o cara está ali lhe oferecendo toda atenção do mundo. Miraculosamente, ele está fazendo isso com mais um ou dois clientes ao mesmo tempo! É como se ele se multiplicasse pela loja, estando em todos os lugares ao mesmo tempo.

Como dinheiro não é uma coisa fácil, chega uma hora que você tem de se decidir pelo que vai levar e pôr um ponto final na sua compra. É triste, é chato, porque você acabou de ouvir coisas bárbaras do artista que você já curtia e agora está com vontade de levar também uns três álbuns maravilhosos de gente que você não tinha ouvido até então. A música ecoa em sua cabeça e é linda. Você está enfeitiçado! Das duas uma: ou você se endivida até os fios de cabelo (o que não é aconselhável, acredite), ou sai dali com a promessa de que vai voltar em breve. E volta!

sexta-feira, maio 21, 2004
 
(((requentando)))
Este texto eu escrevi há séculos para o veículo de um amigo meu, mas ele nunca foi aproveitado. Eu sei que não é justo, depois de tanto tempo, publicar uma crônica antiga, mas pelo menos é uma coisa diferente. :o)


Sobretudo Salvador
Moda de cinema, moda de rua: as tendências trazidas
por uma trilogia que perdeu o senso do ridículo


Poucos dias depois da estréia daquele terceiro filme de uma saga que prometeu revolucionar um monte de coisa e acabou se rendendo aos clichês caça-níqueis de filme de ação, lá me despenco eu para uma sala de cinema de shopping para engrossar os números de sua bilheteria. Eu já havia andado 2/3 do caminho, não ia parar sem conhecer o desfecho, não é?

Não é preciso ser muito observador para perceber que a tal trilogia provocou uma onda comportamental. Nas filas da bilheteria, adolescentes (e outros nem tão jovens assim) usavam casacos pretos, óculos escuros, gel no cabelo. Tentativas de se espelhar no visual futurista da telona. Neos e Trinitys em cada praça de alimentação. Como vivemos no presente e numa terra quente, a galera não tem medo de improvisar, tornando a maioria das imitações bastante... curiosas. Tome-lhe capa-de-chuva, botas baratas e casacos curtos, que às vezes nem chegam a ser na cor preta. Armengue total.

No meu caminho, uma das vitrines tropeça em minha frente, mostrando que o modismo é oficial. Numa loja de roupas "alternativas", todo imponente, um sobretudo encara os passantes. De tecido sintético, ele afronta os que param para vê-lo com os três dígitos do seu preço. Parece dizer "welcome to the real world". Sim, o filme Matrix provocou a venda de casacos sobretudo em Salvador ? Bahia ? Brasil, onde a variação de temperatura é mínima e mal parecemos sair do Verão.

Ligeiramente estarrecida diante da vitrine, eu ria sozinha em pensamento. Imagine alguém tendo um sobretudo preto de tecido sintético em Salvador. Seria realmente muito glamouroso usar uma peça assim nesta cidade. Nos dias de sol, seria difícil aguentar o calor e ainda por cima manter a pele sem empolar. Onde eu estava com a cabeça? Claro que a pessoa não ia usar o sobretudo em dias de sol! Seria uma peça guardada para ocasiões raras e especiais: os dias frios. E quando os dias são menos quentes em Salvador, chove. O belo sobretudo, que não é de tecido impermeável, ficaria ensopado. E as marcas de lama, atiradas pelos carros que pisam fundo nos inúmeros buracos da pista?

Talvez a sombra dessas pequenas calamidades viesse se deitar sobre o feliz proprietário do sobretudo, uma peça de bom gosto e alto custo. O senso de preservação acabaria por enclausurar o poderoso casaco em algum guarda-roupas (ou maleiro) na eterna espera de um dia de estio e vento gelado em que ele pudesse ser desfilado por aí todo garboso. Praticamente como se ele estivesse na artificial realidade da Matrix.

Juliana Protásio é jornalista e precisa de pílulas que
aliviem os sintomas de stress. O que? Elas são azuis?


terça-feira, fevereiro 10, 2004
 
A menina que comeu peligros

Já tomei puxão de orelha, reclamações por pais e mestres, ouvi gritos assustados dos coleguinhas, mas não consigo desistir dessa idéia. Faço questão de subir nessa árvore e quem quiser que a derrube, ou cerque com venenosos espinhos. A vista aqui de cima é muito mais bonita, principalmente quando me penduro de cabeça para baixo nesse galho da esquerda, o mais forte. Quando viro ao contrário, feito o enforcado da carta, balanço a cabeça e sinto o sangue dar cor ao meu rosto, uma maluquice temporária que me deixa meio enjoada, mas vale gostoso olhar pro céu como quem olha pro chão e vice-versa.

No galho mais alto, aquele lá em cima, me penduro com cuidado, sento mais perto do tronco porque sei que ele é mais fino e realmente pode me machucar. É ali que fico mais em paz e vejo as pontas das casas, a cidade inteira parece uma calçada de pedrinhas irregulares, todas mais ou menos da mesma cor-de-telhado. Sinto o sol mais amarelo nos meus olhos e meus cabelos balançando junto com as folhas que fazem barulho de chuva quando o vento sopra. É uma chuva seca, verde e inexistente, só de fazer carinho no ouvido e a gente ameaçar se cobrir com um pouco de frio.

Já comi desses frutinhos azulados, mas acabei vomitando. Minha língua ficou de uma cor irreconhecível e minha cara tão esquisita, que mamãe acabou até esquecendo de me bater e ralhar comigo para eu nunca mais subir de novo naquela árvore. Não posso fazer nada! Não acho graça no trepa-trepa e o balanço é muito baixo. Quando eu crescer, quero ser astronauta pra ficar mais em cima de tudo isso e ver as cidades brilhantes da galáxia, todas elas perdidas no escuro do céu de noite – porque ouvi dizer que no espaço sempre é de noite e dentro dos foguetes os astronautas ficam de cabeça pra baixo e ninguém reclama com eles por isso.

Teve uma vez que arranhei o joelho subindo pelos galhos. Foi um arranhão pequenininho, mas tirou sangue e logo fez o cascão. Cheguei lá em cima do galho mais alto e botei o joelho pro sol pra ver se secava mais rápido, eu fiquei com medo de sujar a árvore. Naquele dia estava nublado e a ferida demorou de secar, por isso eu desci com cuidado, mas aí acabei manchando o tronco e pedi desculpas, mas o diretor foi logo me pegando pelo braço e entre um grito e outro só conseguia entender que ele me chamava de “impossível”. Será que é porque eu não posso subir na árvore? E quem é possível de subir na árvore? Não tenho muitos amigos, mas não sei de ninguém que goste de fazer isso que nem eu. Será que é porque eles são possíveis, mas não querem?

Hoje de tarde ouvi o diretor mais duas professoras conversando com a minha mãe. Parece que é para dar um jeito pra eu não subir mais na peligreira. Eu falei qual era o tipo da árvore? Pois é, é peligreira, uma árvore criada por um povo antigo, que diziam ser muito inteligentes. As frutinhas que ela dá são os peligros, que são gostosos, mas fazem muito mal, como eu já contei. Pois bem... pra eu continuar estudando lá na escola, eles conversaram que tinha de tomar umas tais de providências. Acho que é algum remédio que vou precisar beber, ou então é alguma coisa como supositório...

Finalmente, acabei parando de subir na peligreira. Depois daquela conversa séria, da qual minha mãe saiu com uma cara séria e sobrancelhas vingativas, tudo mudou. A árvore continua lá no pátio e tenho a impressão de que está cada vez mais bonita e suas folhas chovem sempre mais fortes, mas eu estou diferente. Mamãe mandou cortar meus braços e minhas pernas, agora eu fico quieta, como o diretor, as professoras e todos os meus coleguinhas.

quinta-feira, dezembro 18, 2003
 
Cabelo

Comecei deitada olhando pra cima. O dia já exclamava as horas lá fora, mas eu não queria levantar da cama. Foi aí que meus cabelos começaram a ir em direção ao teto. Primeiro eles somente se arrepiaram, mas logo forçaram minha cabeça a erguer-se. Não pareciam puxões nem nada, até porque eles pareciam estar crescendo também, com vida própria de serpentes de Meduza, mas eu jamais transformaria em pedra quem fitasse os meus olhos.

Os cabelos continuaram subindo, levando aos poucos os meus pés do chão. Por algum tempo até caminhei nas pontas dos dedos, e no outro instante mal podia sentir o piso abaixo de mim. Os cabelos se espalharam pelo teto do meu quarto e pararam o ventilador. Eles eram fortes como as ondas do mar, ondas cheias de fibra sedosa cor de tronco de árvore. E eu, lá no meio do quarto, pendendo ao lado do ventilador de teto feito um lustre. Pés descalços, camisola de malha de cor clara e confortável. Ria infantilmente e sem nervoso.

Os cabelos foram rumando para a sala, e eu não podia ver, mas eles já saíam pela minha janela, crescendo como uma hera pela parede do prédio. Era divertido passar por dentro de minha casa vendo tudo do alto, eu estava pouco mais de um metro acima do chão. Chegando na sala de jantar, minha mãe tomava café ao mesmo tempo em que lia o jornal. Uma mecha puxou uma cadeira para mim e me pôs sentada à mesa. Olhando para mim e aquela massa de queratina que se já se espalhava por toda casa, minha mãe falou:

- Menina, você precisa dar um jeito nesse cabelo.

Então eu peguei a faca do pão e me dei este penteado repicado supermoderno.

sábado, agosto 30, 2003
 
Space dogs

- te achei muito bonito para deixar de perguntar seu nome
- Laiko.
- como assim? tipo... o macho da cadela espacial?
- quê?
- Laika. a cadela que foi enviada ao espaço pelos russos .
- ah, sim. quero dizer... não. não acho que meu nome tenha a ver com a cadela.
- pena. ia ter história pra contar. seria engraçado ter o nome do cão espacial. sua origem misturada com as estrelas.
- você diz coisas estranhas. tem certeza de que isso é um flerte?
- é. eu não já falei que te achei bonito? qual a razão de pessoas desconhecidas elogiarem as outras?
- mas logo depois você disse que eu era o cachorro espacial...
- pra quebrar o gelo.
- nem me conhece, já vai me chamando de cachorro?
- ah, se não está gostando, conduza o flerte você mesmo...
- achei você gostosa.
- um pouco de sutileza, por favor.
- ora, você não chegou aqui dizendo que sou bonito. estou retribuindo o elogio. igual, só que diferente.
- tá. e você acha que isso vai nos levar pra onde?
- não sei, mas gosto da idéia de ir com você.
- que bonitinho!
- tá bom. acho que a gente está começando a perder tempo.
- não. estamos indo num ritmo legal.
- vamos sair daqui.
- já? está pensando em que?
- quero fazer você gozar.
- como assim?
- como a cadela espacial.