Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

This page is powered by Blogger, the easy way to update your web site.

 

sábado, agosto 30, 2003
 
Space dogs

- te achei muito bonito para deixar de perguntar seu nome
- Laiko.
- como assim? tipo... o macho da cadela espacial?
- quê?
- Laika. a cadela que foi enviada ao espaço pelos russos .
- ah, sim. quero dizer... não. não acho que meu nome tenha a ver com a cadela.
- pena. ia ter história pra contar. seria engraçado ter o nome do cão espacial. sua origem misturada com as estrelas.
- você diz coisas estranhas. tem certeza de que isso é um flerte?
- é. eu não já falei que te achei bonito? qual a razão de pessoas desconhecidas elogiarem as outras?
- mas logo depois você disse que eu era o cachorro espacial...
- pra quebrar o gelo.
- nem me conhece, já vai me chamando de cachorro?
- ah, se não está gostando, conduza o flerte você mesmo...
- achei você gostosa.
- um pouco de sutileza, por favor.
- ora, você não chegou aqui dizendo que sou bonito. estou retribuindo o elogio. igual, só que diferente.
- tá. e você acha que isso vai nos levar pra onde?
- não sei, mas gosto da idéia de ir com você.
- que bonitinho!
- tá bom. acho que a gente está começando a perder tempo.
- não. estamos indo num ritmo legal.
- vamos sair daqui.
- já? está pensando em que?
- quero fazer você gozar.
- como assim?
- como a cadela espacial.

sábado, agosto 16, 2003
 
Amor é um trem-de-pouso

A gente se conheceu quando eu fui atropelada por uma ambulância. Sim, eu sou o tipo de pessoa que é atropelada por ambulâncias. Nunca fui boa de atravessar ruas, desde pequena. Minha noção de distância é meio distorcida e eu sempre penso forte que vai dar tempo, mas nem sempre isso funciona. Naquela tarde de sábado, não lembro bem o que me distraiu, mas a ambulância em que ele estava me pegou em cheio. A sorte é que não vinha em alta velocidade, porque ele não era um paciente de emergência. Quer dizer, era, mas não era um caso de vida ou morte.

O acidente foi bem pequeno. A ambulância praticamente só triscou em mim, me fazendo cair no chão, quebrar o braço e bater de leve a cabeça. Para evitar maiores problemas e contrariedades, um par de enfermeiros saiu do carro e me enfiou dentro para levar junto para o hospital. Dentro da ambulância estava Nelson, com sua mãe. Ele estava tendo um ataque de apendicite e era levado para fazer uma operação. Apesar de estar sentindo muita dor, ele foi super simpático comigo, fez algumas brincadeiras – Nelson é muito espirituoso – e acabamos ficando de mãos dadas, um diminuindo a dor do outro, sorrindo entre um e outro gemido de alguma pontada mais forte.

No hospital, cada um foi para seu canto. Ele, para a sala de cirurgia que já estava preparada com o seu nome, eu para a área de emergência e trauma, onde engessaram meu braço esquerdo e fizeram todo tipo de exame possível na minha cabeça, que tinha apenas um enorme galo. Logo que terminaram comigo, procurei saber do Nelson e me tornei uma visita constante. Mesmo tendo conhecido ele numa condição super desfavorável, achei ele a pessoa mais linda do mundo. Sem que eu me desse conta, já tinha sido cativada por seus olhos e suas palavras eternamente risonhas.

Ele acabou ficando no hospital três dias a mais do que era previsto porque rolaram umas complicações na cirurgia. Aproveitamos esse tempo para nos conhecermos melhor. Ele me disse que não gostava de seu nome, que era demodê e, ainda por cima, o nome de uma dupla de country americana. Ele fazia piada de tudo! A gente ria muito quando estava junto, era fácil perceber o quanto o rosto de cada um se iluminava na presença do outro. No dia em que ele recebeu alta, era eu quem lhe servia comida na boca dentro do quarto, sua mãe ficou um pouco enciumada.

Nas semanas que se seguiram, ficamos muito grudados. Eu já estava apaixonada, não tinha dúvida nenhuma e tinha quase certeza de que ele sentia o mesmo. O engraçado é que só fomos nos beijar e começar de fato a namorar uns três meses depois. Todo mundo já dizia que éramos namorados e somente nós dois, os dois tontos borboleteantes, é que não sabiam. Eu fico sem graça toda vez que penso nisso. O Nelson também. A gente já se tocou que nosso amor – sim, é mesmo este o nome da coisa – não tem pressa. É quente, mas não é fulminante. Não nos avexa. Não põe em cheque a cada esquina. É algo assim acidental e tranquilo, como um pequeno atropelamento de ambulância.

Acho que passamos, ao todo, uns cinco meses juntos, desde que nos conhecemos até sua viagem. Nelson é três anos mais velho que eu, já é formado e pintou a oportunidade de fazer mestrado na Holanda. Ele já pensava na Europa muito antes de me conhecer, talvez a sua vida toda. Quando nos encontramos, ele já estava acertando as coisas para essa tal viagem. Ao meu lado, ele se esqueceu um pouco disso e sua família foi cuidando de tudo à sua revelia. Com tudo certo, ele queria desistir da viagem, por minha causa. Caí na gargalhada, só faltei lhe dar um cascudo por tamanha bobagem. Ele dizia que ir para a Europa era uma fuga, que ele achava que aqui não era seu lugar, que pensava que ficaria a vida inteira sozinho por aqui, até que me conheceu e se encontrou e agora se sentia confortável, que não queria soltar a minha mão por nada nesse mundo, que comigo tudo fazia sentido, que agora ele se sentia inteiro porque tinha encontrado sua outra metade e até disse que me amava, então desatou a chorar.

Não sei de onde tirei tamanha porção de auto-controle, mas segurei minhas próprias lágrimas, empostei a voz embargada, lhe dei um beijo e disse que ele precisava ir. Expliquei que aquela era a chance pela qual ele esperou e lutou durante toda a vida, que eu não conseguiria ficar tranquila sabendo ser a razão da frustração de um sonho, que a viagem era a oportunidade para melhorar toda sua vida e que, se a gente acreditava mesmo no que sentia, aquela seria a prova ideal. Ele me chamou de fria e viajou um mês depois.

Nós não brigamos, mas as coisas ficaram bem estranhas no último mês que passamos juntos. Eu sentia exatamente tudo aquilo que ele havia descrito no dia em que me disse que queria desistir da viagem. A cada dia que nos aproximávamos de sua partida, eu sentia como se estivesse desaparecendo. Ele perguntava o que era e eu não sabia como explicar, porque tinha medo de que qualquer deslize meu pudesse fazê-lo desistir da Holanda de uma vez. Eu simplesmente engolia seco e lhe devolvia um sorriso.

No dia em que ele foi embora, no nosso abraço final, parecia que eu queria me fundir a ele, atravessar sua pele, me misturar em suas entranhas, ir com ele para onde quer que ele fosse. Era verdade. Eu queria atravessar seu coração, ser o sangue em suas veias – que piegas! Quando nossos corpos se separaram, ele olhou nos meus olhos, compreendendo o que meu peito tinha dito ao seu, falou que ainda estava disposto a desistir de tudo por minha causa. Com o tal sorriso de quem engole seco, segurei um par de lágrimas nos cantos dos olhos e disse que ele só não desistisse de mim. Com certa resistência, ele soltou minha mão e foi embora.

Eu continuei caminhando pelo aeroporto com aquelas lágrimas cravadas nos cantos dos olhos, mas quando, da plataforma, vi seu avião levantar vôo, foi como se eu tivesse penetrado em outra dimensão, uma dimensão sem Nelson. Nesse exato instante, tudo explodiu em meu peito e eu desatei a chorar todas aquelas lágrimas guardadas dos últimos dias. Mas, no fundo, eu acreditava que a gente não ia desistir de nada.