Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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terça-feira, fevereiro 10, 2004
 
A menina que comeu peligros

Já tomei puxão de orelha, reclamações por pais e mestres, ouvi gritos assustados dos coleguinhas, mas não consigo desistir dessa idéia. Faço questão de subir nessa árvore e quem quiser que a derrube, ou cerque com venenosos espinhos. A vista aqui de cima é muito mais bonita, principalmente quando me penduro de cabeça para baixo nesse galho da esquerda, o mais forte. Quando viro ao contrário, feito o enforcado da carta, balanço a cabeça e sinto o sangue dar cor ao meu rosto, uma maluquice temporária que me deixa meio enjoada, mas vale gostoso olhar pro céu como quem olha pro chão e vice-versa.

No galho mais alto, aquele lá em cima, me penduro com cuidado, sento mais perto do tronco porque sei que ele é mais fino e realmente pode me machucar. É ali que fico mais em paz e vejo as pontas das casas, a cidade inteira parece uma calçada de pedrinhas irregulares, todas mais ou menos da mesma cor-de-telhado. Sinto o sol mais amarelo nos meus olhos e meus cabelos balançando junto com as folhas que fazem barulho de chuva quando o vento sopra. É uma chuva seca, verde e inexistente, só de fazer carinho no ouvido e a gente ameaçar se cobrir com um pouco de frio.

Já comi desses frutinhos azulados, mas acabei vomitando. Minha língua ficou de uma cor irreconhecível e minha cara tão esquisita, que mamãe acabou até esquecendo de me bater e ralhar comigo para eu nunca mais subir de novo naquela árvore. Não posso fazer nada! Não acho graça no trepa-trepa e o balanço é muito baixo. Quando eu crescer, quero ser astronauta pra ficar mais em cima de tudo isso e ver as cidades brilhantes da galáxia, todas elas perdidas no escuro do céu de noite – porque ouvi dizer que no espaço sempre é de noite e dentro dos foguetes os astronautas ficam de cabeça pra baixo e ninguém reclama com eles por isso.

Teve uma vez que arranhei o joelho subindo pelos galhos. Foi um arranhão pequenininho, mas tirou sangue e logo fez o cascão. Cheguei lá em cima do galho mais alto e botei o joelho pro sol pra ver se secava mais rápido, eu fiquei com medo de sujar a árvore. Naquele dia estava nublado e a ferida demorou de secar, por isso eu desci com cuidado, mas aí acabei manchando o tronco e pedi desculpas, mas o diretor foi logo me pegando pelo braço e entre um grito e outro só conseguia entender que ele me chamava de “impossível”. Será que é porque eu não posso subir na árvore? E quem é possível de subir na árvore? Não tenho muitos amigos, mas não sei de ninguém que goste de fazer isso que nem eu. Será que é porque eles são possíveis, mas não querem?

Hoje de tarde ouvi o diretor mais duas professoras conversando com a minha mãe. Parece que é para dar um jeito pra eu não subir mais na peligreira. Eu falei qual era o tipo da árvore? Pois é, é peligreira, uma árvore criada por um povo antigo, que diziam ser muito inteligentes. As frutinhas que ela dá são os peligros, que são gostosos, mas fazem muito mal, como eu já contei. Pois bem... pra eu continuar estudando lá na escola, eles conversaram que tinha de tomar umas tais de providências. Acho que é algum remédio que vou precisar beber, ou então é alguma coisa como supositório...

Finalmente, acabei parando de subir na peligreira. Depois daquela conversa séria, da qual minha mãe saiu com uma cara séria e sobrancelhas vingativas, tudo mudou. A árvore continua lá no pátio e tenho a impressão de que está cada vez mais bonita e suas folhas chovem sempre mais fortes, mas eu estou diferente. Mamãe mandou cortar meus braços e minhas pernas, agora eu fico quieta, como o diretor, as professoras e todos os meus coleguinhas.